quarta-feira, abril 11, 2007

de correr mundo


a.m.

De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
Mas, se num caso a vida se conhece
e noutro caso nos conhece a nós,
por ambos aprendemos que do mundo
se vive o que não passa, ou se não vive
o que passando é só terras e gentes -
-o conhecer, porém, não se conhece nunca.
Apenas resta a escolha: como descobrir
essa experiência inútil. Antes, pois,
correr do mundo as terras e os humanos
que consumir-se alguém ao lado deles sempre.
jorge de sena in visão perpétua (3/10/1972)

1 comentário:

linfoma_a-escrota disse...

MENINO DO BALOIÇO ESTÁTICO

Esteve sentadinho na mesa de brincar dos pais
durantos tantos anos sozinho
que nunca teve a noção do desejo.
Era pequenino, os outros metiam-lhe medo e
estaria sempre
bem protegido no canto mais escuro de si mesmo,
sem sequer disso se aperceber.
Imaginava com os dedos sujos das crianças
inseguras,
sonhos a pastel sem coragem para levantar vôo.
Fez causas e efeitos devastadores
com seu riso estridente e libertador,
era angústia escondida num corpo mirrado
a falar mais alto e a mentir a toda a gente.
Começou a pintar o corpo e as paredes
para se exprimir,
fotografava-se para ficar bonito e escondia-o do mundo
porque Almeida Garrett disse que a modéstia era a melhor virtude
e ele cumpriu.

Mais velho
nunca chegou a arrancar sinceridades,
nem o mais breve olhar de curiosidade pelo seu mundo.
Devia ter ficado sem se expôr
na mesa rasteirinha da sala de estar
onde pertencia e
onde seus sonhos foram deuses altruístas.
Não havia lixo no chão,
estava tudo no seu sítio certo e
se chorasse
não teria mentiras para o consolar,
mas sim amigos imaginados
a galar qualidades refundidas nas
pétalas mais doces e avermelhadas
das rosas mais belas e extraviadas
no jardim mais longínquo e surreal da existência.

Era a gota virtuosa que escorrega
nos resquícios dum orgulho masoquista,
suavemente mal tratada
espelhando-se
nesta infância presente.

2003
in fotosintese


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