terça-feira, novembro 27, 2007



Uma amiga pergunta-me se é melhor a monogamia ou a poligamia. Respondo:
Tinha treze ou catorze anos. Estudava piano e harmonia no Conservatório de Atenas. [...] Era Verão e véspera dos exames. [...] Um dia, depois de acabar de harmonizar um basso obligatto, entrei numa sala onde um colega meu, clarinetista [...] estava a estudar uma peça do exame. [...] Reparei que o seu clarinete era velho [...] e perguntei-lhe se se ía apresentar a exame com aquele mesmo instrumento. A princípio pôs-se a olhar para mim, boquiaberto, depois sorrindo com malícia, respondeu: “Não. Este é o meu clarinete de estudar. Para tocar em público tenho o clarinete bom.”
Para justificar a monogamia no matrimónio, os evolucionistas contavam do seguinte modo a formação da família: o homem diziam, no princípio vivia como as bestas, em estado de promiscuidade. Num segundo tempo, os filhos começaram a juntar-se à volta da mãe (permanecendo o pai mais ou menos ignorado), constituindo-se assim o matriarcado. Mais tarde ainda, o pai tornou-se, por sua vez, o chefe de família e formou o patriarcado que, na sua origem, era poligâmico e que só em recentes épocas se tornou monogâmico. Karl Marx, por seu turno, define a monogamia como “uma superestrutura da economia capitalista”, e explica-a pelo desejo do homem de transmitir a própria substância aos filhos, o que levou a humanidade à família monogâmica. As explicações citadas são dois exemplos claros da importância que no raciocínio humano têm os “preconceitos”, ou seja, o hábito de explicar a vida, o homem, o universo, qualquer coisa, partindo de uma ideia e desenvolvendo de fio a pavio, aquilo a que na prática dos filósofos se chama “um sistema”.
Eu penso que descobriremos mais facilmente a razão da monogamia se tomarmos como exemplo o jovem clarinetista do Odeón de Atenas.
Toca-se melhor no mesmo clarinete, melhor do que em clarinetes diferentes. Para o êxito do acto sexual, a harmonia entre os dois instrumentistas tem uma importância crucial. A técnica do acto sexual tem, como qualquer técnica, alguns segredos próprios, a sua poesia, a sua profundidade, que não se podem atingir se não se ultrapassar os obstáculos da intimidade e do pudor. A lei biológica, segundo a qual a fecundidade não pode ocorrer senão em condições de escuridão absoluta, alarga o seu “sentido” a toda a operação amorosa, coloca o acto sexual numa condição de estúpida superficialidade. O pudor que rodeia e cobre completamente o acto amoroso tem por objectivo torná-lo mais solitário – mais profundo.
Só dois amantes que fazem amor sempre um com o outro, fiéis duetistas, e que se “intimizam” cada vez mais, podem chegar à profundidade “abissal” do acto sexual, essa variante humana da origem da Via Láctea.


in a Vida de Henrik Ibsen, Alberto Savinio

*o artigo foi encontrado na mesma pasta que continha o original da Vida de Henrik Ibsen

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